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Tudo&Nada

Retalhos de tudo...e de nada...

quinta-feira, maio 20, 2004

Levanta-te! Vê como o dia está lindo!
Não quero. Deixa-me. Quando saíres fecha a porta.
Encosta-se a um canto do quarto, o mais escuro, aquele que ainda está molhado de lágrimas da noite anterior, aquele ao qual não chega nenhum raio de sol por mais que se abram as janelas, aquele que é o confidente, o ouvinte, o refúgio de todos os segundos. Deixa-se cair pela parede abaixo até encontrar o chão. Fica assim de cabeça entre os joelhos mais uns minutos, mais umas horas, mais um dia.
Levanta-te! O sol está a sorrir-te! Anda!
Não quero. Deixa-me. Quando saíres fecha a porta.
Hoje não tem forças nem para se levantar da cama. Fica ali, imóvel, com os olhos postos no nada, sem pensamento nenhum que lhe atravesse o espírito e o liberte daquela monotonia. Lá fora o mundo não pára. Todos prosseguem o seu caminho alheados do que os rodeia, sós no seu mundinho de preocupações. Os carros fazem um barulho ensurdecedor, vibrante de cidade. Os putos correm loucos pelas ruas, tentando chamar a atenção de quem passa. Ninguém lhes liga, está tudo demasiado absorto para se aperceber da presença de uns quantos putos traquinas. Eles também não se importam, continuam a brincar com um sorriso estampado nos olhos. Mais um dia a correr, devagar, devagarinho, parado. Mais um dia que ficou só. Mas ficou porque quis. Ou não?
Levanta-te! Tens uma visita!
Não quero. Deixa-me. Quando saíres fecha a porta.
A porta abriu-se.
Sou eu.
Sai.
Não.
Então não saias mas cala-te. Não quero ouvir a tua voz, nem sequer te quero ouvir respirar, não quero sentir o mais pequeno traço da tua presença.
Está bem. Apreciaremos então o silêncio.
Foi o silêncio mais ensurdecedor da sua vida. Será que não compreendia que queria estar só? Em paz no seu canto de sempre? Só lhe apetecia fugir dali para fora. E foi o que fez. Correu até à porta e saiu. Correu, correu, correu até as pernas lhe doerem. Correu até o coração lhe palpitar a mil à hora. Correu até se sentir como pássaro a quem soltaram da gaiola. Correu como cavalo no meio de um prado infinito de verde. Correu até voar para um outro mundo bem distante daquele. Correu até todas as suas mágoas desaparecerem por momentos, por doces momentos. Se lhe perguntassem quanto tempo tinha durado aquela sensação não saberia responder, tinha parado no tempo como bolha de sabão que paira diante dos nossos olhos que, mesmo sabendo que está prestes a rebentar, continua cheia de cor, cheia de felicidade em reflectir o nosso sorriso. Só que a bolha tem necessariamente de rebentar, tal como a tristeza que espreitava dentro do seu coração pronta a dominar. Os seus olhos antes espelhados por um sorriso ficaram novamente indiferentes a tudo e a todos. Sentou-se então num banco próximo. Não tinha reparado mas aquele lugar onde tinha ido parar era junto ao mar. Ficou a contemplar o que estava para lá do horizonte. As ondas não se atreviam a mexer e os barcos caminhavam caracolosamente vendo os seus marinheiros a dormir ao sol. Tudo estava calmo. Tudo não, o seu coração estava irrequieto, parecia uma pequena criança aos pulos por um gelado. Que estranho...O seu coração nunca estava assim, costumava hibernar...Olhou então em seu redor e eis que se rasga um sorriso à sua frente.
Sabia que aqui estavas.
Como?
Este lugar traz-me memórias que se cruzam com as tuas.
Olhando à sua volta, fazia agora um esforço por se recordar dessas memórias cruzadas. Em vão...Estava num tal oco de sentimentos que não conseguia aceder a recordações algumas. De olhos perdidos no ondulante do mar esquecera-se da presença que estava a seu lado.
Quero estar só.
Levemente como uma pluma soprada do alto de um penhasco abandonou o lugar para aceder àquele pedido que não queria obedecer.
Ficou só. Sem ninguém a seu lado. Só num silêncio que já não era ensurdecedor, já não era incómodo, já nem era silêncio. Como sempre tinha repelido o mais pequeno traço de gente à sua volta. Como sempre estava só, com os olhos postos no nada. Como sempre pôs-se a um canto daquele lugar de terra molhada. Estaria molhada pelas lágrimas secas que não haviam escorrido? Não importava. Nada lhe importava. Nada! Nem ninguém... Tinha caído neste estado de apatia brutal que feria todos, sem que se apercebesse disso mas não se conseguia libertar das amarras tecidas por essa força interior que lhe sugava os últimos vestígios de felicidade. Não conseguia, não queria...Era demasiado confortável aquele estado de apatia para querer saltar para um outro, pois esse salto implicava coragem, uma coragem que não tinha e que não lhe podia ser dada por ninguém, por mais que o tentassem fazer. Ergueu a cabeça, levantou-se e caminhou em direcção ao mar. Estava tão bonito o mar...Sorriu. Sorriu com gosto! Como era bom sorrir! Até sentia os olhos a sorrir, a cara toda, cada músculo do seu corpo sorria! Nem sabia bem porquê, era uma estupidez sorrir sem razão, pensava. Desvaneceu-se o sorriso. Que estupidez estar ali naquele sítio, sentado a olhar uma porção de água salgada cheia de algas e peixes e peixinhos, que estupidez estar a sorrir sem razão, sinceramente....Que estupidez! Levantou-se enojado com a sua atitude. Enojado era o termo para o seu estado de alma. Estava enojado com aquele mundito em que vivia, com as suas atitudes e consigo... Voltou costas ao mar e esbarrou com uma criança. Linda, de caracóis loiros e sorriso aberto, sincero. Pisou-lhe o pé e fez-lhe uma careta desaparecendo a correr dali para fora. Riu-se. Aquela criança tão pequena deu-lhe vida com simples gestos inocentes.
É assim mesmo. As coisas simples, às vezes, despertam-nos.