html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> Tudo&Nada

Tudo&Nada

Retalhos de tudo...e de nada...

terça-feira, novembro 16, 2004

Percorria o caminho que faço todos os dias quando venho da escola para casa mas hoje a noite tinha já caído e, no lusco-fusco, era difícil aperceber-me do que se passava ao meu lado direito. Montes de terra e ervas daninhas erguiam-se monstruosos tropeçando sobre mim num irremediável ruído de carros e motas e camiões e camionetas e lambretas e carrinhos e carrões que passavam estressados sobre a ponte que ficara para trás. Absorta na minha música não tinha reparado que algo se mexia por entre as folhas de uma qualquer árvore que sobrevivera aos dias de sol, e não, não era o vento que perdera a força, de tanto assobiar o dia inteiro por entre as saias e os cabelos das rapariguinhas.
Prossegui o meu caminho em direcção ao fim da trilha pavimentada que se bifurcava, ao fundo, em dois pedaços de terra batida atravessados ao meio por um molhe de ervas mal aparadas de cor esverdeada e pontas secas; segui pela direita olhando à minha volta, como sempre faço assim que chego a algum lugar diferente do que acabo de passar, e vejo camuflado nos montes, nas ervas, nas folhas, um vulto masculino agachado remexendo na terra com um graveto. O meu coração congela e as minhas pernas não me obedecem. Quero correr dali para fora o mais rapidamente possível e, no entanto, fico imóvel no silêncio daquele lugarzinho afastado de tudo em redor. Reconheço aqueles cabelos revoltos a milhas, podiam dar-me mil cabelos revoltos para eu observar mas aqueles destacar-se-iam sempre, sempre! Dou um passo em direcção ao vulto, ainda não tenho o total controle do meu corpo, quero voltar para trás e só caminho cada vez mais em frente. Escuto uma melodia vinda de um calor de voz quente, a minha melodia! Estou bastante perturbada com o que acaba de me acontecer...pensei...pensei que nunca mais o veria...E agora de repente, no fim de um dia normal como tantos outros, sem quaisquer indícios de uma surpresa, eis que me aparece, camuflado nas ervas!
De olhos esbugalhados encontro-me já atrás da sua sombra e suspiro. Está com aquelas calças de ganga rasgadas no bolso de trás, com os farrapos a saírem por fora, o seu casaco preto de anos e anos parece mais gasto que o normal e os ténis, sujos de terra, contam as histórias por que já passaram sem se aperceberem da minha presença intrusa. Toco-lhe no ombro levemente e vejo a sua face a virar-se lenta e cansada para mim. Que lindos olhos tinhas e como a sua vivacidade se perdeu! Estão de um castanho gasto, triste e apagado, sem aquele olhar límpido e sorridente que tinhas sempre. Levantas-te ligeiramente curvado para me beijares a bochecha gélida, como sempre fazias aquecendo num rápido todo o meu corpo, hoje, nem me consegues corar. Sinto o teu hálito de cerveja que me enjoa e vejo as tuas mãos brancas, os teus dedos compridos de pianista, a tentarem tocar-me nos cabelos revoltos da aragem que sopra agora mais forte. Afasto-me e olho em volta na tentativa de que apareça alguém para me salvar da tua presença. Ninguém aparece e eu sozinha não tenho coragem de te deixar assim só, a remexer a terra com um graveto...Reparo no que escreveste mas as letras estão num tal turbilhão que nem as consigo descodificar. Olhas para mim sem me ver. Tenho até as minha dúvidas quanto à tua memória...Será que ela guardou os nossos momentos? Ou de tão enegrecida pelo fumo se esqueceu até de algo tão marcante? Marcante para mim pelo menos...Para ti, nem sei já o que foi marcante. Tomaste a tua decisão sem me consultares e ofereceste-te assim...facilmente, irremediavelmente. Olhando para ti tenho a sensação errónea de que te poderia ter estendido a mão; da maneira como estávamos se te tivesse estendido teria embrenhado contigo nesse mundo sem saída, sem lugar para mim. E isso eu não suportaria. Nem tu.Viro-te então as costas e corro, corro até não poder mais, sem olhar para trás pois sinto os teus olhos cravejados nas minhas costas e encará-los seria atormentar-me novamente. Porque é que escolheste logo o fim do meu caminho para estares assim escrevinhando seja lá o que for? Não podias simplesmente ter desaparecido ao rumor da minha passagem? Tu sabes que a tua presença é para mim um espinho encravado e também sabes que não o posso tirar porque se o tiro, sangrará para sempre.